Espaço
Literário
Teatro: uma ramificação artística e cultural, tão diferente de qualquer outra, ou pelo menos um tanto quanto individualizada. São inúmeros os estudos e as definições acerca do gênero, seja na escrita, na encenação, na direção, enfim. São diversas também, as temáticas.
Enquanto se fala em teatro dentro do teatro, ou seja, nos ambientes apropriados, aparentemente não há problema algum, ou se existem, são poucos. No entanto ao lermos ou ouvirmos sobre o projeto inovador da Cia de Teatro Proscênio, pelo menos aqui em Ribeirão Preto, nos vêm, sobretudo, dois questionamentos e até certa estranheza ou repulsa, tais como: será que vai ser bom? Há espaço para tamanho evento?
Não está entendendo nada, não é mesmo? Pois bem, explicarei!
Trata-se de uma peça teatral encenada dentro de um ônibus, instalado no estacionamento da Igreja Sete Capela. O projeto chama-se “Busão Teatral”. Na verdade são várias peças em cartaz, com duas sessões: a primeira às 19:30 e a segunda às 21 horas. A temporada vai do dia 24/10/2015 a 21/11/2015. São quatro peças: “Visita a Vincent”, “Janela Fechada”, “Sarapalha” e “Meus Eus”.
A escrita e a leitura de uma obra teatral são etapas constitutivas do processo, extremamente minuciosas e complexas, porém, não mais do que a direção, a montagem e a encenação. Esses últimos afazeres envolvem uma série de outras questões: iluminação, som, cenário, figurino, e por aí vai. Aliás, é nesse quesito que ficamos com o pé atrás antes de realmente conferirmos o que os atores têm a nos apresentar.
Vai aqui uma curiosidade sobre duas das peças em cartaz: em “Visita a Vincent” Paulo Oliveira é ator e Valter Navarro diretor; já em “Janela Fechada” os papeis se invertem: Paulo Oliveira é diretor e Valter Navarro ator. Mas o barato não está aí, pelo menos não só, Valter foi aluno de Paulo na longa trilha das artes cênicas. Imaginem o carinho e a honra recíproca que há entre ambos! Esse feedback deve ser tão prazeroso e gratificante.
Cabe falar algumas linhas sobre Vincent Willem Van Gogh. Ele foi um pintor neerlandês que obteve reconhecimento e valor só após sua morte. Correspondia-se com seu irmão Theo por cartas. É claro que há muito mais, mas se quiser saber, vá assistir à peça.
Logo de início já se tem algumas ações corriqueiras que todos nós fazemos todos os dias: acordar, escovar os dentes, jogar água no rosto e molhar o cabelo, tomar água, calçar os sapatos, etc. Mas espere, é preciso prestar atenção, pois há algo nas entrelinhas: a rotina exaustiva e insignificante, a depressão.
Ao acordar e passar por todas essas atividades, Van Gogh põe-se a escrever para seu irmão Theo. Não somente nesta, mas em todas as cartas, Van Gogh fala sobre política, religião, arte, sobre si mesmo, mas tudo com um único objetivo: expor e criticar a desvalorização da arte pela sociedade – pelo menos as suas – assim como registrar sua incompreensão e revolta diante tanto descaso para consigo e suas produções.
Em uma das cartas Vincent fala ao irmão Theo que acabará de receber alta do hospício e descreve as lembranças de alguns episódios que passara por lá. Nesse momento podemos dizer que Vincent deixa de ser o narrador e passa a ser o personagem, incorporando a loucura e se fazendo como tal, através do fluxo de consciência.
A passagem mencionada me fez lembrar de “Vestido de Noiva” de Nelson Rodrigues, pois nessa peça há uma inovação: os momentos – cenários – em que se passam a história, denominados de planos. São eles: plano da alucinação, plano da memória e plano da realidade. De certa forma ocorrem simultaneamente. O que de fato também ocorre, mesmo que com técnicas diferentes, em “Visita a Vincent”.
Farei uma observação pessoal enquanto escritor a respeito dos artistas em geral. Boa parte, se não todos os que estão ligados à arte e à cultura, sobretudo os que as produzem, são anormais. Quero dizer que somos loucos, solitários, temos nossas manias, nossos defeitos ou deficiências físicas. Quer com maior ou menor intensidade, quer esporádica ou diariamente, quer aceitem ou não, quer nós mesmos nos aceitemos ou não. Vejam, por exemplo, o caso de Beethoven que ficou praticamente surdo e compôs belíssimas sinfonias; de Pablo Neruda que só escrevia com tinta verde; de José Saramago que só escrevia duas folhas por dia; de Machado de Assis que era epilético e gago, sofria do estômago; do próprio Van Gogh que cortou uma de suas orelhas como demonstração de carinho que mantinha por uma jovem garota conhecida.
Não me estenderei mais no assunto, pois o é amplo, relativo e polêmico.
Os devaneios de Vincent remeteram-me à mente o quadro de humor criado pela companhia de teatro Os Melhores do Mundo, intitulada Joseph Climber. Em certo momento um dos atores – o que seria o narrador – menciona que o outro personagem – Joseph Climber – incorpora o espirito de Van Gogh. Mas as semelhanças não param por aí, além de tal fato, ocorrem várias intempéries com Climber, assim como com Gogh.
Nesse sentido: de um artista ignorado pela sociedade e considerado como louco – me lembro também de “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago. A sociedade retratada no ensaio, que ainda não está cega, mas que ao ficar, ainda se manterá superior por não se misturar ao primeiro grupo de cegos, é a mesma sociedade da época de Van Gogh. Quer dizer que ambas se recusaram a reconhecer e aceitar seus respectivos integrantes.
Em certo momento da peça, Van Gogh em um de seus fluxos de consciência diz: “e se eu tivesse feito isso, e se eu tivesse feito aquilo”. A passagem faz lembrar os versos de Carlos Drummond de Andrade em “E agora, José?”: se você gritasse / se você gemesse / se você tocasse...”. Se se fizesse alguma coisa, mas não se fez. E se arrependeu, é claro. Um arrependimento tão comum e torturante.
O próximo instante da peça é as passagens em que Van Gogh relata quando conheceu algumas moças, uma delas prostituta. Paulo que interpreta nossa celebridade faz também o papel das moças, nos mostrando que um único e bom ator é capaz de conduzir um espetáculo.
Agora os papeis se invertem novamente, Vincent escreve sua carta final para Theo e se suicida.
A peça é encenada por um único ator, Paulo Oliveira, o que desde seu início até o fim, juntamente com o ambiente e todos os recursos tecnológicos utilizados minuciosa e brilhantemente, nos mostra que não é necessário um espaço monstruoso, um extenso aparato tecnológico e uma grande equipe para se produzir um belo espetáculo.
Se você não conhece as obras mencionadas, não se preocupe. A peça será tão emocionante para você – talvez até mais – quanto para os que as conhecem.
Se você ainda não foi, vá. O ambiente é aconchegante e climatizado, os pufs confortáveis, a decoração muito bem feita. Se você já foi, vá novamente. E prepare-se para boas risadas e muitas lágrimas, ora do riso, ora da emoção.
Todas as peças são puras e fortes catarses epfânicas.
