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Quem casa tem, para casa sempre retorna – foi o que Matheus Arcaro fez e provou; indo, inclusive, muito além: retornou com a mesma roupa que partira. Arcaro é um rapaz travesso, pois entre seu “desaparecimento” e o “retorno”, escreve as vivências de suas alucinações e/ou as alucinações de suas vivências.

Aparentemente ainda criança, ele saiu pela primeira vez, vestido de filósofo aspirante a escritor, com seus contos embaixo do braço, ao encontro com autoridades da área e com os futuros leitores. Logo ao se fazer notar, mostrou que a “criança” era apenas ilusão de ótica, pois com suas Violetas Velhas e outras flores, impressionou a todos com um inesperado nocaute.

Insatisfeito, como se fosse uma criança exausta após horas de brincadeiras, exilou-se para treinar, muito mais rigorosamente; afinal, quando voltou, o fez como um maratonista quebrando seu próprio recorde. Eis agora, um romance – narrativa longa – intitulado O lado imóvel do tempo. Obras de extrema riqueza, com títulos na medida exata ao que se propõem.

Seja lá o que for, fato é que o autor traz desta vez, seu terceiro título – de contos – costurado pelo Amor e pela Morte, daí a genialidade no título Amortalha. Tanto o é que nas palavras de Menalton Braff, grande e renomado ícone da literatura, encontra-se o excerto:

 

Matheus Arcaro deixou de ser um ensaio, uma preparação para o grande salto. Ele já comprovou que chegou para ficar e que seu modus vivendi é o salto. Depois do Violeta velha e outras flores, com que se inaugurou na arte de narrar, deu à luz o romance O lado imóvel do tempo, comprovando que não tem fôlego somente para as narrativas curtas. Amortalha é seu terceiro livro, com que confirma sua competência nos manejos da língua.

O que melhor caracteriza os vinte e um contos de amortalha são as figuras e retórica, fartas e quase sempre inusitadas.

 

A vida e os seres vivos, especialmente os Seres Humanos, são a batida de figuras de linguagem homo e heterogêneas, ou seja, a todo o momento somos e vivemos antíteses, paradoxos, hipérboles, eufemismos etc. Assim o sendo, há milênios, pensadores explodem suas cabeças tentando formular teorias e encontrar respostas aos dois extremos da vida – o nascer e o morrer – encadeados pelo Amor, seja ele qual for.  Aliás, está aí uma belíssima dica ao autor: juntar o hobby à profissão e redigir um ensaio sobre as tônicas de Amortalha, apresentando sua própria filosofia.

Enquanto aguardamos o próximo livro-surpresa de Matheus – quem sabe o referido ensaio – um dos personagens do conto “Foucault ficcionista”, chega a fazê-lo por meio destas passagens:

 

“ – Mas você me disse inúmeras vezes que não temia a morte, que o lugar pra onde iria é melhor porque lá poderia filosofar e encontrar a verdade...”

“ – Falar da morte enquanto ela, teoricamente, está longe, é uma coisa. Vê-la morder seus calcanhares é bem diferente. A iminência da morte faz a gente repensar a vida.”

“Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte.”

 

A vida e a morte são fatos inevitáveis e, entre tantas teorias e questionamentos existentes, o que mais perdura e importa é o que se refere à morte, pois ela, por melhor ou pior que seja, diferentemente da vida, é o fim, concordem ou não.

A vida, se boa ou ruim, continua a girar ao redor de um Ser e, o Ser, continua a viver; já a morte, é o motor apodrecido de um carro que acaba de fundir e, em breve, será reduzido a menos da metade de seu tamanho e às lembranças, portanto, eis a questão: a morte é realmente libertadora e a solução para os problemas? E mais, no caso de a morte se fazer por meio de suicídio: tal ato é de extrema coragem ou covardia?

E quanto ao amor?... O que é isso, afinal? Quantos amores há? Vale mesmo apena vivê-lo? Talvez, tal nobre e carrasco sentimento, valha mais do que a própria vida e morte, afinal, é com ele que mais se conviverá entre um pelo e outro. Sobre isso, uma das possibilidades é o que ocorreu com D. Nenê, personagem do conto de mesmo nome, ao desiludir-se com os homens:

 

“Ela não sentiu o peito escorrer, não sentiu os olhos molhados, não sentiu medo de não sentir nada. Só não confiou mais em homem algum, apenas no filho.”

 

O livro está repleto de boas passagens discutindo os assuntos; o autor utiliza-se não só dos conceitos filosóficos injetados na construção de seus personagens, como também de epígrafes (de grandes nomes da filosofia e das literaturas) e de habilidoso domínio das técnicas narrativas e das figuras de linguagem.

 

Estas epígrafes: “E a morte não era o que pensávamos.” – Clarice Lispector / “Em matéria de amor, o silêncio vale mais do que a fala.” – Blaise Pascal / “Nos dias quotidianos é que se passam os anos.” – Millôr Fernandes, prenunciam o que se verá nos contos que se seguem e como é conduzida a vida.

A destreza de Matheus com sua área de atuação, com os recursos linguísticos e com as técnicas narrativas é tão grande, que em uma única oração conseguiu criar metáfora, comparação e retórica:

 

“Bete arrasta as sandálias como se precisasse desgrudar uma verdade da calçada.” (Salvação)

 

Há quebra do tradicionalismo ao apresentar a junção entre a ‘fala’ do narrador e o diálogo do personagem:

 

“No peito, lateja a frase da catequista. Não, Elizabeth, os cachorros não vão pro céu; somente nós humanos, que somos imagem e semelhança de Deus, temos alma. Somente nós temos livre-arbítrio. Somente nós podemos escolher o caminho da salvação.” (Salvação)

 

O trecho permite, ainda, questionar-se sobre as conceituações que Humanos fazem de Animais, levando em conta, inclusive, quem é mais humano.

Nos excertos que seguem, do conto “Má educação”, Matheus traz, respectivamente, a prosopopeia, a metáfora e um belo parágrafo descritivo-metafórico.

 

“O sol dá sinais de cansaço [...]”

“[...] pernas zonzas, milhares de pernas em transe.”

“[...] escarrados elegantemente nos telejornais”

“Nervosas balas de borracha entre as cabeças desviantes. Lágrimas tombadas graças à química e à dor no espírito. Estilhaços de futuro espalhados pelo asfalto. O verde e o amarelo transformados em vermelho escuro, quase marrom.”

 

Comparações associadas de modo preciso e fascinante:

“Leu aquelas linhas feito alguém que devora a comida não vista há dias.”

“[...] expirou como se arrancasse dos pulmões a metade mais recente da vida.”(Demétrio)

 

Ou ainda, a analepse, que denominada de tantas outras formas, de maneira geral, é a quebra da narrativa para apresentar uma lembrança de um personagem.

 

“Pedro entrou em casa e chamou pela esposa. Mas, desta vez, ela não respondeu. Colocou o capacete sobre a mesa da cozinha, tirou o colete azul claro e, ao observá-lo, lembrou-se do conselho que dera ao patrão. Precisa modernizar esse visual, Olivia. Isso parece marca de supermercado. Gritou novamente. E ouviu: estou no quarto, amor. Ele acendeu a luz e, de súbito, foi imobilizado pela lingerie vermelha. Cinta-liga, calcinha e sutiã de renda. Eu sou tua, Pedro. Só tua, pra sempre.” (Fé)

 

Amortalha é, portanto, um livro para quem, incessantemente questiona-se e busca respostas acerca da vida, para os otimistas e pessimistas; para os que, de alguma forma, estão ou já estiveram envolvidos com a vida, a morte ou o amor; para escritores e filósofos, enfim, para os que se aventurarem a mergulhar nesse mar de sangue agridoce da existência.

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