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O que é a vida senão uma circunferência paradoxal, interrogações motivacionais, verbos vãos?

Você, professor Domires Donido, deveria mais do que ninguém, ter essas respostas na ponta da língua.

Todos os dias aquela mesma estrada, aquelas mesmas visões, aquelas mesmas pernas, aquelas mesmas audições. Depois de um tempo já não se nota mais nada, torna-se uma correnteza com itinerário traçado.

Donido passou uma, passou duas, várias vezes pelo local; sempre como um caça passeando pelas nuvens. Não fosse a música, jamais perceberia haver algo a mais entre calçadas e comércios.

Pouco depois de refletirem raios de sol em suas retinas, da noite anterior, que fora em estado de brancos dentes, orgasmos de excitantes realizações, partiu para a rotina de sempre. No entanto, desta vez, impôs a si mesmo a obrigatoriedade de atentar-se para cada partícula de seu trajeto. Nada passaria despercebido diante à janela, recém-aberta.

Marretadas secas e arrepiantes, passos ofegantes e apressados, diferentes tons ressoando de rodas em movimento, vozes codificadas e uníssonas, onomatopeias infinitas em meio ao caos. De repente, uma nova e paradoxal paisagem é avistada... morada, estilo de anos atrás, em uma rua de comércios e parada de ônibus. Mais um pouco e... outra imagem: uma anciã, visando e viajando no horizonte logo a sua frente, camuflando-se com a aspereza, a ocuosidade, o desbotamento e o descascar das paredes.

Dias depois, mais uma nota para compor a orquestra: a quinta de Beethoven. Essa música não me sai do pensamento! Aquela sinfonia e aquelas pinturas em relevo também não. Há alguma coisa aí, não haveria de se coincidir tais combinações por acaso.

 O final da primavera trocou de turno com o início do outono e, como passam as estações, passou e continuava passando, Domires. Era sempre aquele velho quadro, já não tão exibido e notório, sobreposto àquela isolada morada, de uma solitária e misteriosa criatura.

Ao passar em frente à referida moradia, Donido pegou uma capa quadrada – aquelas dos antigos CDs enormes e de plástico – que a anciã deixara cair e, viu em uma bela caligrafia, a dedicatória: “Para Mirela Lembo, mestra e magistral das maestras. Com carinho, Charles Mozart”.

Tome, senhora. Domires não ouviu sequer um agradecimento, deixando o disco no parapeito da janela e pensando: – Nossa, mas que pessoa mal educada! Qual será o motivo de tanta rispidez?

Intrigado com a situação decidiu fazer alguns testes para tentar descobrir a razão de tanta amargura e fazer aquela criatura mostrar sua dentadura. Passou em frente à casa e acenou. Mirela permaneceu imóvel. Repetiu o feito três dias consecutivos, inclusive tentando estabelecer algum fio de prosa e... nada! A vovozinha não vê e não ouve ou realmente não quer papo comigo.

Juntando a fome com a vontade de comer e aproveitando a viagem, Donido entrou numa loja de discos. Era a loja do Belo – um amigo – do outro lado da rua e em frente à residência de Mirela. Pagando a visita que estava devendo ao amigo há um bom tempo, aproveitou e indagou-o sobre a velha.

 Aquela senhora ali, o que me diz a respeito?  Rapaz, o vidro da janela já quase não reflete mais as imagens e o som sintonizou-se com o mudo. Entendo, mas como aconteceu? Gradativamente, foram consequências da profissão. E qual é?

Belo contou-lhe tudo o que sabia sobre a vida de Mirela, pelas notícias em jornais e em outros veículos, inclusive por ela mesma, tempos atrás, antes de ser acometida por tais mazelas.

Continuou Belo: fruto de uma família de artistas, a maioria músicos, Mirela Lembo regeu a Sinfônica de Ribeirão Preto por décadas. Foi maestra e também compositora. Suas obras foram trilha de novela e filmes, rodou o mundo todo em execuções pelos teatros. Ela sempre gostou de ouvir, o que quer que fosse, o mais alto possível, pois dizia que assim notava os mínimos detalhes. Seu ouvido era absoluto. Com o passar do tempo, devido a esse hábito e a um problema genético que desconhecia, o volume foi amenizando-se. Mirela sempre foi persistente e dificilmente se deixava abater, tanto que continuou em seu posto na Sinfônica. Seu gosto musical era e ainda é bem eclético: ouve de Carlos Gardel e Beethoven às músicas atuais. Sua preferência é pelas antigas composições, devido ao costume herdado de seu pai e é claro, as clássicas e New Age, inerentes da profissão e paixão. Seus compositores preferidos são Beethoven, Mendelssohn,Vivaldi, Kitaro, Gardel e Nelson Gonçalves. E por que está ali, aposentou-se? Sim, aos setenta anos, decidiu dar oportunidade a um jovem maestro egresso na cidade há poucos meses, amicíssimo de um dos músicos da Orquestra. Dizia que já trabalhara demais e queria aproveitar o pôr do sol.      

Dias após a posse de Yago – o novo maestro – sem muitos afazeres em casa, passou a observar a rua e a vida de sua janela. Som dos motores dos carros, sirenes, freadas, pessoas conversando, cachorros latindo, enfim, a rotina frenética e caótica do dia a dia a fez concluir que estava diante de uma Sinfônica Urbana, real. Passou então a ser regida.

Escuta, será que consigo falar com ela? Creio que sim, mas terá que gritar, pois o som ainda não foi completamente silenciado. Já não lhe garanto o mesmo quanto a vê-lo, pois o espelho foi mais afetado; reflete, praticamente, apenas sombras.

 BOM DIA, D. MIRELA. TUDO BEM? Tudo sim, meu filho. Quem é você? SOU O PROFESSOR DOMIRES, ESTIVE COM O DONO DA LOJA DE DISCOS, ELE ME CONTOU SOBRE A VIDA DA SENHORA. GOSTARIA DE LHE FAZER DUAS PERGUNTAS, POSSO? Claro. Quais? POR QUE A SENHORA FICA DEBRUÇADA SOBRE ESSA JANELA OBSERVANDO A RUA COM O SOM LIGADO SE NÃO PODE VER E OUVIR? Ora, meu jovem: depois que a luz se apaga se aprende a viver no escuro, e no meio de um som alto, todos os outros se silenciam. Feche os olhos e veja comigo: a melhor forma de se ver é não ver, mas sim imaginar; o que se vê é uma coisa aos olhos, mas o que se imagina é o oposto ao coração e à mente. O mesmo vale para o que ouvimos. Um surdo ouve pelo corpo, pelas vibrações; já o cego enxerga pelos sons e pela imaginação. E a outra pergunta, qual é? O QUE A SENHORA APRENDEU COM TODO ESSE TEMPO E EXPERIÊNCIAS DE VIDA? Somos um quadro: quando nos olhamos de fora para dentro, somos apenas um amontoado de tinta, espalhados pela tela; quando nos olhamos de dentro para fora, somos uma pintura concreta, ou seja, o amontoado de tinta adquire forma; e por fim, quando nos olhamos das duas formas, a pintura transforma-se em abstrata, adquire sentido.

*

Professor, o senhor acredita em inspiração? – Domires suspirou profundamente: lembrou-se de Mirela. – Sim, inclusive acabei de pensar em um tema para a lição de casa de vocês. Quero que escrevam, no gênero textual que preferirem, sobre “a vida do cego que via e do surdo que ouvia”.

Ao chegar em casa e pegar o jornal do bairro, Donido lê na coluna dos que chegaram a outra margem do rio, que Mirela está agora compondo belíssimas melodias com sua harpa.

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