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Artistas, em geral, são múltiplos; são metonímias contextualizadas, ou seja, abrem-se às diversas produções resultantes das ramificações inerentes às suas áreas maternas de atuação. No entanto, muitas vezes, há os que não o são, seja lá por qual motivo for.

Em outras palavras, tendo a arte da escrita como exemplo, muitos escritores – independentemente do gênero – conseguem transitar por entre as demais modalidades, ou até mesmo, por entre outras áreas, como a artes plásticas. Ocorre, contudo, que ao se realizar a devida transição, os traços característicos da arte materna são incorporados à arte segunda, direta ou indiretamente.

Matheus Arcaro é um belo representante dos que transitam, é um artista insatisfeito com apenas uma arte, pois quer saborear o desconhecido, aventurar-se no desafio. A primeira faceta de Matheus se deu como artista plástico (pintor), seguida de contista, e por fim – pelo menos por enquanto – como romancista e poeta. Aliás, cabe ressaltar que poeta não é somente quem escreve versos, mas também, quem apenas transmite e/ou sente a poesia, produzindo, portanto, o poema subjetivo da e na psique.

O primeiro livro de Arcaro, “Violeta Velha e Outras Flores”, é uma obra densa, muito bem lapidada e de extremo requinte estético. São contos moldados ao estilo do autor, de forma estreante, afinal é sua experiência primeira na escrita.

Partindo para seu segundo título, “O Lado Imóvel do Tempo”, adentra outro gênero literário, dois na verdade: o romance e a poesia. Como já fora exposto, Matheus trouxe traços do eu contista para o romance, como outrora já tinha demarcado o eu poético em seus contos, e agora, o mantem, unificando-o à multiplicidade de eus, característicos de cada gênero literário.

O livro já nos chama a atenção pelo título, pois é um paradoxo ambíguo / ambíguo paradoxo, no sentido de que o tempo voa, e nós é quem não nos damos conta e ficamos estagnados. A (i)mobilidade do tempo depende do contexto referencial atribuído ao e pelo hospedeiro da leitura.

Quanto à qualidade, incluindo a temática, ou melhor, as temáticas; particularmente prefiro o primeiro título ao segundo. Na verdade, a questão não é preferência, mas sim, os efeitos colaterais que ambas as obras causam.

A primeira obra pareceu-me muito mais chocante e impactante do que a segunda, não que esta também não o seja; é como perguntar ao escritor qual o seu livro favorito – dentre os que escreveu. Não há, pois todos são queridos, o que há, é um carinho e uma preferência diferente para cada um.

A capa, a diagramação, a orelha, os comentários, o prefácio e o posfácio, o plano de conteúdo, são inquestionáveis quanto à qualidade.

O livro traz o tempo com seus tantos sentidos e consequências, além da vida, sob o olhar da metapoesia e da metaliteratura, como temáticas gerais.

Nesse sentido, Salvador dos Santos, protagonista do romance, relata não só o fazer poético, como também, tudo o que envolve a vida de escritor, incluindo lançamentos de livros e as frustações inevitáveis da cerreira.

A maioria dos capítulos inicia-se com epígrafes, compostas por poemas de Salvador, os quais apresentam uma riqueza admirável quanto à escrita e às metáforas. Os outros são escritos em primeira pessoa, e, portanto, representam os devaneios de Salvador, em outras palavras, o fluxo de consciência. Esse fluxo é uma quebra na linearidade da história par apresentar a busca de Salvador por si mesmo, ou seja, são os momentos em que o protagonista questiona-se sobre sua identidade e sobre a vida.

Identifiquei-me demasiadamente com o viés poético de Salvador, pois também sou escritor, com preferência aos temas existenciais e afins, tal como o protagonista.

Eu, Salvador e inúmeros outros escritores vivenciam as retratações presentes no romance, sobretudo, a dificuldade com as vendas e a solidão. Escritores, em especial poetas, são indivíduos sensíveis e em busca de identidade(s).

Outro fator que contribuiu para minha identificação foi a noite de autógrafos do livro de Salvador, pois assim como ele, fui auxiliado por quem, naquele momento, era minha namorada. Mas ao contrário de Susana, a minha parceira me incentivava e era sempre minha primeira leitora.

Esse aspecto de o personagem ser escritor e de os capítulos começarem com seus poemas, configura a metapoesia e a metalinguagem, além de ser uma abrangência enfática nos caminhos que Salvador percorreu, buscando sua verdadeira identidade e objetivos.

Nesse sentido, lembrei-me do poema “A Vida na Hora” da poetisa polonesa Wislawa Szymborska, no qual também se encontra analogia com a área artística, expressando um dos tantos significados para a vivência humana. Veja alguns versos: “Não sei o papel que desempenho. / Só sei que é meu, impermutável. / Improviso embora me repugne a improvisação. / De que se trata a peça / devo adivinhar já em cena. / Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia. / E o que quer que eu faça, / vai se transformar para sempre naquilo que fiz”.

Em certa passagem, ao mencionar a palavra objeto, novamente fui remetido a mais uma autora, agora, Lygia Fagundes Telles, no conto “Os Objetos”, no qual a personagem diz que quando olhamos para as coisas e as tocamos é que elas começam a viver como nós, pois continuam, ou seja, não mudam o que são por circunstância alguma.

Diz ainda que os objetos são têm sentido quando há sentido, ou seja, precisam exercer alguma função (ser olhado, tocado) para que exerçam a função de objeto.

A inanimação dos objetos leva à humanização do cachorro de Salvador, chamado Pessoa e, portanto, remete ao clássico, “Vidas Secas”, ao fazer analogia à Baleia.

Aliás, tal artimanha, foi uma excelente sacada de Matheus, afinal muitos animais têm mais coração e importância do que muitos seres humanos.

A atribuição de Pessoa como nome do animal, é de certa forma, uma via de mão dupla, pois ao mesmo tempo em que é um nome universal, conferindo uma identidade ao cachorro, não específica exatamente qual identidade é essa, ou seja, o animal tem identidade para o dono e não para a sociedade.  É como se um pai reconhecesse o filho e desse um nome a ele, mas não o registrasse no cartório.

Além, é claro, da analogia ao poeta Fernando Pessoa, o qual se utilizou de heterônimos, ou seja, várias identidades.

Em outro momento, a palavra racionalidade é citada. Está aí a chave para o romance, pois através dessa característica humana é que advêm todas as outras, é a racionalidade que nos faz como somos, muitas vezes, humanos desumanizados e vice-versa. Muito melhor seria se agíssemos por instinto do que pela racionalidade.

Salvador, mesmo na época em que estava com Susana, foi e ainda é um indivíduo solitário e incompreendido. O fato de ele não conseguir fazer nada na vida e ser alguém, deve-se à insegurança, à ilusão com a vida literária; a desvalorização do eu interior por parte do sistema, ou seja, significamos pelo que resultamos e não pelo que somos, somos objetos humanizados.

“O lado imóvel do tempo” é um mosaico de clássicos da literatura, montado e significado com traços particulares e peculiares do autor, ou seja, os clássicos serviram como pano de fundo para a criação de Matheus.

O diferencial da obra não está necessariamente no enredo, mas na maneira como Arcaro conduz a história e prende o leitor. Na busca frenética e dolorida pela sua verdadeira faceta, Salvador, ou melhor, Arcaro nos leva a um desfecho, de certa forma previsível, mas não tanto esperado.

A obra é um livro com temáticas pertinentes e atuais, linguagem simples, mas recheada de técnica – que não se percebe, ou melhor, não se faz exibicionista e enfadonha – e figuras de linguagem, sobretudo comparações, sinestesias e metáforas.

É um livro, que pela expectativa do desfecho, se quer chegar logo ao final, mas que deve ser lido com calma, degustando cada pormenor.

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